Quando morreu, ao chegar ao céu dos cachorros, o vira-latas Lulu - que todos chamavam de Lu - protestou:
- Ora, isso não tá certo. Deus puxa a brasa pra sardinha dos homens. A vida deles é muito melhor...
São Pedro que, como todo bom porteiro, é atencioso, tentou explicar que não era bem assim, mas o vira-latas mostrou-se irredutível.
O bom velhinho então, consultando seu computador, viu que estava havendo um parto na terra, numa cidadezinha chamada Três Corações, e propôs ao implicante que voltasse para nosso mundo como gente e, assim, quando morresse poderia vir para o céu dos humanos.
O vira-latas aceitou.
Lúcio da Silva - que todos chamavam de Lu - nasceu às 4,30 da tarde, na Rua da Cotia um bairro grande, na entrada da cidade, e, nem bem abriu os olhos, foi dependurado de cabeça pra baixo e levou um tremendo tapa na bunda.
Quis latir, protestando, mas o que conseguiu foi soltar um berro esquisito, semelhante a um instrumento desafinado: “Uuaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhh....”
Em seguida enfiaram-lhe numa bacia e, enquanto ele se esgoelava aflito, a família toda se aproximou falando coisas incompreensíveis: “É a cara do pai..”, “É a cara da mãe...” e uma tal de Tia começou a passar os dedos em seus lábios, dizendo: “Bilú, bilú, bilú, ne-néééémmm...”
E, por mais que ele gritasse, protestando, ninguém compreendia e não o deixavam em paz. “Isso é só no começo”, ele pensou, “depois melhora”. Mas não melhorou.
No dia seguinte um homem a quem chamavam Pediatra, acendeu-lhe uma lanterninha na boca, arregalou-lhe os olhos, mexeu em seus ouvidos, disse que tinha que fazer teste do pezinho, vacinar contra isto, contra aquilo e, como se não bastasse, enfiou-lhe goela abaixo um líquido horroroso...
Pouco tempo depois começou a andar como estava acostumado: nas quatro patas.
Mas, não sabia por que, chamavam aquilo de engatinhar.
Quis protestar, nunca se dera bem com gatos, não aceitaria aquela ofensa, mas conseguiu apenas balbuciar um hhhaaaannn!!!!, que fez a tal Tia dar um grito:
- Ele ta começando a falar. Meu Deus, que gracinha...
E foi um corre-corre. A desgraçada pegando-o no colo, jogando-o para cima: “Fala titi...titi... titi-a-a-a-a-a-a!!!
Mas não era só isso: a mãe o obrigava a comer uma papa horrível enquanto suspendia a colher e dizia: “hhhhoooonnnnnn... olha o aviãozinho, olha o aviãozinho”. E tome comida, tome vitaminas, e não pode andar descalço, e sai da chuva, e sai do sol , não sobe na janela, não se esconda embaixo da mesa, e já pra casa, cê ainda é criança pra brincar na rua...
Quando cresceu arrumou emprego num banco. Ficava o dia inteiro contando dinheiro - muito dinheiro - e no fim do mês recebia uma mixaria que não dava nem pra pagar as contas. Sim, pois os humanos viviam cheios de contas para pagar. Era aluguel, prestação, luz, gás, telefone, impostos, padaria, açougue e etc., etc., etc., etc.
Um ano depois casou-se, alugou casa na periferia e... as contas aumentaram. A mulher, que antes era tão compreensiva, começou a tratá-lo da mesma maneira que sua mãe o tratava quando criança:
- Não suja o chão! Vai comprar leite, varre o quintal, vê se o feijão não ta queimando...Cê não acha que tá muito marmanjo pra ficar na rua?????
Lu teve filhos, enfrentou desemprego, brigou e desbrigou com a mulher que vivia lhe martelando os ouvidos:
- Toma conta das crianças. Tem que pagar o açougue, tem que consertar o fogão, a privada tá quebrada, a pia tá pingando....
Os filhos cresceram, se casaram, e diziam: “Toma conta dos seus netos, nós vamos sair...”
E a mulher: “Sai da rua, cê tá muito velho pra ficar no sereno...”
E os netos: “olha o cabelo dele que belezinha, tá branquinho... bilú, bilú, bilú... vovôôôôô......” “Meu Deus - ele pensou, vendo um cachorro virando uma lata de lixo na calçada em frente - será que os animais passam por tanta amolação?”
Como não gostava de sujeira, atravessou a rua para espantar o cãozinho, sentiu um pontada, uma dor aguda no peito e... pumba. Caiu.
Foi socorrido pelos vizinhos, mas nada adiantou. Morreu de infarto.
Quando chegou ao céu, Lu foi conduzido ao tal paraíso dos humanos, cheio de anjos, de homens, de mulheres, de adolescentes, de crianças... “Credo, será que vai ser tudo igual?”, pensou.
Logo, logo começou a tremer, sentir pavor, segurou na barba de São Pedro e protestou gritando: - Nada disso. Aí, não, pelo amor de Deus. Nada de gente perto de mim. Quero ir pro céu dos cachorros. Lá pelo menos tem postes, muitos postes, onde vou poder erguer minha perna e mijar. Mijar a vontade. Quero mijar pra essa tal de humanidade!!!!
Olhou para baixo, viu a confusão na terra, levantou a perna e soltou o xixiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, sentindo uma grande felicidade.
Braz Chediak é cineasta. Entre outros filmes dirigiu NAVALHA NA CARNE (1ª. versão), DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA ( 1ª. versão) e BONITINHA MAS ORDINÁRIA. Participou da antologia CRIME FEITO EM CASA, organizada por Flávio Moreira da Costa. Escreve crônicas para diversos jornais e sites.